O trailer verde na entrada da cidade poderia vender qualquer coisa. Artesanatos em couro ou mármore. Variedades de doces. Gêneros alimentícios. Poderia até abrigar uma borracharia. Ou um ponto de apoio para viajantes. Ou ainda estar abandonado, servindo de morada para cachorros vadios.
O trailer verde na entrada principal de Pio IX poderia ser de uma senhorinha gorda, de bochechas rosadas, vestida em um avental limpinho. Empunhando uma faca amolada, ela cortaria um pedaço generoso de queijo de manteiga e serviria ao viajante. Com café fresco, passando na hora.
Há 10 anos afastado do torrão natal, o cliente da mulherzinha rechonchuda sentiria ali, logo na chegada, os sabores da sua terra. E mastigando o queijo se daria conta da percussão da saudade batucando em seu peito.
O visitante que desemboca da estrada esburacada direto na sede do município de Pio IX chega cansado. A cidade parece ficar no fim do mundo e os solavancos do caminho fazem do tempo um caminhante preguiçoso. Acostamentos de matos secos margeiam lá e cá a velha estrada.
É quando o asfalto termina e o calçamento irregular começa, que ele surge. Sombreado por um algaroba, recebe com indiferença os visitantes. Tímida armação de flande mal pintado, coberto por telhas de cerâmica, é de uma insignificância contumaz.
Guloseimas que empapam a boca nunca serão vendidas ali. Quanto mais artesanatos em couro ou mármore. O trailer verde na entrada da cidade é, na verdade, uma armadilha. Dessas covardes, que atraem pela fraqueza e dão o golpe final na maioria das presas, largando-as no chão, desacordadas.
Contra a lógica das armadilhas, ele abre mão da cautela. Dispensa o mimetismo da confusão diária e anuncia sua natureza. Em letras vermelhas e garrafais, não há meias palavras. “Pega Bebo”.
O trailer verde na entrada da cidade é um boteco. Desses de dono preguiçoso. Abre vez na vida. Prateleiras pensas sustentam variedades de cachaças. Não muitas. O espaço é curto. Mas fortes e baratas. Doses e meotas a preços acessíveis aos frequentadores.
Também não há mesas ou cadeiras nas calçadas. Quem cambaleia até lá encosta no balcão e faz o pedido. E a bebida é servida. Sem cerimônias. Em um copo ornado por digitais.
O “Pega Bebo” tem esse nome por ser o último barzinho da cidade. Se é que podemos chamar o trailer verde de barzinho. Os apreciadores de bebidas etílicas, principalmente os do interior, bebem todas nos bares do centro e, no final da tarde, na linha de fundo da cidade, se achegam no balcão e pedem a última dose da feira.
Os menos ébrios mandam a última talagada goela abaixo, jogam o corpo sobre a carroceria de uma D-10 antiga e partem rumo à semana de sol e enxada. Outros são nocauteados pela dose certeira de Ypióca ou Cariri. E deitam por ali mesmo. No sono confortável dos justos, aconchegados no colchão de pedras e cimento. Guardados pela sombra do frondoso algaroba.
É o solado desses pés que reverenciam os visitantes. “Sejam bem-vindos a Pio IX, terra do sol nascente!”, dizem as havaianas encardidas.

muito bom o texto! :D
ResponderExcluirSempre sozinha, na frente do PC, leio os textos de Rômulo Maia envolta entre lágrimas e risos, que ressoam no meu próprio ouvido. Rômulo escreve como quem prepara um coquetel, desses enfeitados com canudinhos coloridos, cheio de exageros que disfarçam o conteúdo forte que ali contém. Vou bebendo suas palavras sempre desprevenida...e cá estou, embriagada da alma. Rômulo é poeta! Daqueles: fingidor! "Finge tão completamente. Que chega a fingir que é dor. A dor que deveras sente. ...".
ResponderExcluirTalvez isso explique porque choro ao ler o mais despretencioso dos seus escritos.
CLAP CLAP CLAP!
muito bom o texto...
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